Numa das ocasiões em que bebiam um licor junto ao rio, agasalhados por uma manta gentilmente cedida pelo empregado do bar da esplanada onde se encontravam, Miguel confessou a Alice que se sentia preso, talvez a ela, mas sobretudo a alguém com quem havia mantido, ou manteria, uma relação de uma amizade intima. Miguel confessava com toda a verdade que Alice lhe conhecia na alma que não sabia o que fazer. Queria libertar-se daquela relação, que vinha já dos tempos da faculdade, e que tantas vezes servia somente como um escape...ou o escape, pois estava sempre lá para Miguel, fosse dia, fosse noite, pedindo, não querendo...Miguel sabia que era amado, mas não amava. Deixava-se amar. Mas sentia-se por vezes até constrangido por deixar que tal acontecesse, assumindo uma espécie de fraqueza em se fazer impor...ou talvez somente a fraqueza de quem tem receio de deixar um porto seguro, cujas paragens conhece e que sabe que o abriga em qualquer tempestade.
As palavras de Miguel deixaram Alice num estado de alma de grande tormento, contudo, procurando manter a calma e com um respeito profundo, e talvez até admiração, pela honestidade de Miguel, Alice separou o pensamento da alma, a razão do sentimento. Alice deixou de defender o que para si queria.
- Miguel - disse Alice - se gostas dessa tua amiga tens a obrigação de fazer dela a mulher mais feliz do mundo. Contudo, se não a amas, se não a sentes como a luz dos teus olhos e o brilho do teu ser, tens igualmente a obrigação de lho fazer entender. Podes até iludir-te a ti mesmo e deixá-la iludir-se durante algum tempo, talvez até durante bastante tempo, mas chegará na mesma o momento em que a farás sofrer. É uma questão de antecipares as lágrimas a bem da felicidade dos dois. Se a queres agarra-a com convicção, se não a sentes...mostra-lhe o caminho, com coragem e o carinho de quem estima alguém, sendo que estimar e amar são conceitos e sentimentos diferentes.
Miguel queria encontrar uma princesa, rara, especial, diferente de todas as outras, pelo menos aos seus olhos, e Alice sabia que a princesa não se encontrava na história que Miguel lhe havia contado...mas também sabia que o vestido dos contos de fadas não estava guardado para si.
No regresso a casa, Alice sentia-se esvaziada. Tinha dito algumas das palavras mais difíceis da sua experiência de vida. Era como se por instantes, longos instantes, tivesse dividido o seu corpo em duas partes, uma das quais abdicava de quem gostava para que a outra pudesse dizer o que sentia ser correcto dizer. E Alice chorou, chorou muito, em silêncio, na companhia da almofada noite dentro.
(continua)
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