quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Desencontros IV

Numa das ocasiões em que bebiam um licor junto ao rio, agasalhados por uma manta gentilmente cedida pelo empregado do bar da esplanada onde se encontravam, Miguel confessou a Alice que se sentia preso, talvez a ela, mas sobretudo a alguém com quem havia mantido, ou manteria, uma relação de uma amizade intima. Miguel confessava com toda a verdade que Alice lhe conhecia na alma que não sabia o que fazer. Queria libertar-se daquela relação, que vinha já dos tempos da faculdade, e que tantas vezes servia somente como um escape...ou o escape, pois estava sempre lá para Miguel, fosse dia, fosse noite, pedindo, não querendo...Miguel sabia que era amado, mas não amava. Deixava-se amar. Mas sentia-se por vezes até constrangido por deixar que tal acontecesse, assumindo uma espécie de fraqueza em se fazer impor...ou talvez somente a fraqueza de quem tem receio de deixar um porto seguro, cujas paragens conhece e que sabe que o abriga em qualquer tempestade.
As palavras de Miguel deixaram Alice num estado de alma de grande tormento, contudo, procurando manter a calma e com um respeito profundo, e talvez até admiração, pela honestidade de Miguel, Alice separou o pensamento da alma, a razão do sentimento. Alice deixou de defender o que para si queria.
- Miguel - disse Alice - se gostas dessa tua amiga tens a obrigação de fazer dela a mulher mais feliz do mundo. Contudo, se não a amas, se não a sentes como a luz dos teus olhos e o brilho do teu ser, tens igualmente a obrigação de lho fazer entender. Podes até iludir-te a ti mesmo e deixá-la iludir-se durante algum tempo, talvez até durante bastante tempo, mas chegará na mesma o momento em que a farás sofrer. É uma questão de antecipares as lágrimas a bem da felicidade dos dois. Se a queres agarra-a com convicção, se não a sentes...mostra-lhe o caminho, com coragem e o carinho de quem estima alguém, sendo que estimar e amar são conceitos e sentimentos diferentes.
Miguel queria encontrar uma princesa, rara, especial, diferente de todas as outras, pelo menos aos seus olhos, e Alice sabia que a princesa não se encontrava na história que Miguel lhe havia contado...mas também sabia que o vestido dos contos de fadas não estava guardado para si.
No regresso a casa, Alice sentia-se esvaziada. Tinha dito algumas das palavras mais difíceis da sua experiência de vida. Era como se por instantes, longos instantes, tivesse dividido o seu corpo em duas partes, uma das quais abdicava de quem gostava para que a outra pudesse dizer o que sentia ser correcto dizer. E Alice chorou, chorou muito, em silêncio, na companhia da almofada noite dentro.
(continua)

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